segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Salvia Divinorum e o Crime da Anvisa! [Hempovão Ed. 183#]

por Israel Silva

 

...Escolhemos um local seguro, eu e uma amiga especial. Tínhamos um notebook ligado a caixas de som. Escolhi como trilha para a primeira sessão o eufórico manifesto musical Inbewteen the Liners, da banda MGMT (uma das faixas mais inovadoras de todo o contexto da neo-psychedelia, recomendado). Com o pequeno cachimbo em mãos, já preenchido com o extrato da “menta sagrada”, acendi o isqueiro. A fumaça era magicamente leve, pura, tinha um flavour incomparável e não agredia as vias respiratórias. Foram apenas três tragos.

 

Tá todo mundo, tá todo mundo... eu repetia. Uma euforia sem igual tomou conta de mim. O cachimbo na minha mão agora parecia enorme, e era ele quem me segurava, não o contrário. Minha visão periférica diminuiu, eu só podia enxergar nitidamente no ponto central da minha visão; tudo para além desse ponto eram forças translúcidas, ondulando e literalmente serpenteando pelas paredes e pelo teto. Eu tentava dizer algo à minha amiga, mas não balbuciava nada além de tá todo mundo. Todo o mundo estava em mim. Parecia que minha consciência se separava de meu corpo, e passava a integrar o que estava ao meu redor, como um novo corpo. Apenas olhei para minha amiga, mas o que era ela e o que era eu, se eu sentia suas costelas dentro das minhas? Senti então que estava sendo absorvido pelas paredes, e que o edifício jamais me deixaria sair. Mas ele deixou. Eis que partes das paredes desapareciam e apareciam, eu enxergava o céu laranja daquela tarde através delas. Minha percepção se expandiu ainda mais, e eu via boa parte da cidade em que me encontrava, de várias perspectivas diferentes.

 

Então voltei a mim, tão rápido quanto havia ido. Eu ainda estava naquela pequena sala branca, os dois olhos verdes e atenciosos de minha companheira psiconauta ainda me olhavam como se tivessem visto um fenômeno de grandes proporções.  Lembro-me do adendo dela: “foi genial”, exclamou. E foi mesmo. Minha primeira experiência com a Salvia divinorum foi um processo progressivo de despersonalização, e uma progressiva conexão com o mundo. Não havia “eu e outro” nem “eu e mundo”, mas tais antagonismos passaram a ser percebidos (literalmente sentidos na carne) como algo uno, e tal foi o valor simbólico proporcionado pela experiência. Ora, tentem mesurar o que é perder o ego, perder o próprio corpo por alguns instantes, e verão que a experiência enteogênica é mais que uma mera viagem ou escapismo, podendo ser comparada simbolicamente a uma morte em vida, de onde se pode renascer com muito mais coragem e auto entendimento. Dói saber que tais experiências fizeram parte da história da humanidade nos últimos milhares de anos e que, paradoxalmente, estejam sendo banidas em nosso momento mais avançado, momento que por sua vez compreende uma parcela ínfima (questão de décadas) de nossa história. Estamos ignorando milênios de cultura essencialmente humana e, particularmente no caso da Salvia, nossa própria cultura latinoamericana, dada a ancestralidade de seu uso entre os Astecas e Mazatecas no sagrado solo de Oaxaca, México. Assim, evidencia-se de forma gritante que a atitude arbitrária e indiscutida da Anvisa de proibir a salvia divinorum (e também o LSA) é, como toda proibição similar, um desrespeito a nossos direitos individuais, culturais e espirituais, e exprime perpétua ignorância, como será exposto aqui.

 

Com efeito, há muita desinformação sobre a Salvia Divinorum. É comum vermos pessoas confundindo-a com aquela que se usa para tempero (Salvia officinalis). Encontramos inúmeras matérias de fundo de quintal, publicadas em versões online de jornais tendenciosos como O Globo e Revista Época, chamando-a de “nova maconha”, o que é absurdo, vista a enorme diferença entre as duas plantas, seus efeitos e sua frequência de uso; ninguém poderia fumar tanta salvia quanto se fuma maconha e, se o fizesse, muito rapidamente deixaria de sentir seus efeitos, pois nosso organismo desenvolve tolerância a seu princípio ativo, a salvinorina A. Genéricos e superficiais em quase tudo, nos EUA já apelidaram a planta de “Sally-D”. Curiosamente, antes de ser criminalizada em muitos dos Estados norte-americanos, chegou a ser vendida na TV, sendo mostrada em comerciais extremamente exagerados. Podemos, inclusive, ouvir um desses anúncios no início da faixa Salvia Divinorum, dos mestres do psytrance full-on, 1200 Micrograms (também recomendado).

 

É primordial notar que a Salvinorina A não tem nenhum poder de vício, quer químico, quer psicológico. Até hoje não se tem notícia de nenhum incidente ligado a Salvia. Deveras, já que a planta é um dos psicodélicos mais seguros que existem, pois não apresenta toxicidade e seus efeitos, embora de uma intensidade singular, duram pouco, não deixando qualquer sequela no organismo. Aliás, a Salvia divinorum é uma das plantas de maior poder psicoterapêutico, e poderia ajudar muitas pessoas que sofrem com depressão severa, esquizofrenia e dependência de outras drogas mais “sujas”. Saber de tudo isso evidencia que a proibição desta erva é injustificável, ainda mais se levarmos em conta que, como sabemos, a proibição só trará problemas a mais: tráfico, prisões, novos gastos para o Estado (pagos por nós), além de um grande desrespeito ao sacramento de muita gente.

 

Portanto, creio que todos nós devemos nos unir e fazer barulho também em relação à Salvia, visto que sua proibição representa, para todos nós, um gigantesco retrocesso. Não se trata apenas da maconha ou da salvia separadamente. Nossa luta deve ter um viés maior. Devemos afirmar o princípio de autonomia dos corpos, e a experiência enteogênica como um direito de todo e qualquer ser humano, como sempre o foi ao longo de nossa história cultural.

 

Assine e divulgue o abaixo assinado para defender a Salvia Divinorum! Temos apenas sete mil assinaturas.

 

Texto por Israel Silva, graduando em Filosofia pela FFLCH/USP, autor, compositor e atuante em saraus suburbanos.

5 comentários:

  1. Excelente matéria. Definitivamente mais um retrocesso para o Brasil que cada vez se afunda mais na lama do proibicionismo.

    ResponderExcluir
  2. ANVISA. Se é pra proibir, proíba-se

    ResponderExcluir
  3. Concordo plenamente com a ideia de que a experiência enteogênica vai muito além do que muitos imaginam...

    Essas palavras expressam perfeitamente a minha opinião:
    "Dói saber que tais experiências fizeram parte da história da humanidade nos últimos milhares de anos e que, paradoxalmente, estejam sendo banidas em nosso momento mais avançado, momento que por sua vez compreende uma parcela ínfima (questão de décadas) de nossa história."

    Excelente texto!

    ResponderExcluir
  4. Só quem já usou a Santa Sálvia, pode compreendo o quão fundo é o buraco do coelho.

    ResponderExcluir
  5. Obrigado Hempada, por publicar minha matéria.

    ResponderExcluir