sábado, 19 de setembro de 2009

[Ed. #29] Rastafórum: O uso da Cannabis na cultura Rastafari!

por Lucas Kastrup

O rastafarianismo pode ser descrito brevemente como um movimento filosófico religioso que preza pela auto-subsistência de seus seguidores, enfatizando os aspectos positivos de uma vida rural, de alimentação vegetariana e consumo da cannabis, entre outras condutas identificadas por eles como possuindo uma característica essencialmente “natural”. Por outro lado, a busca pela “naturalidade” pode ser compreendida como uma forte crítica aos moldes ocidentais (racistas) de produção, consumo e distribuição da renda.

Desta forma existe um duplo motor na práxis rastafari. O primeiro diz respeito a uma cultura que prioriza o contato com a natureza e identifica sua própria tradição religiosa como sendo “natural” e, o segundo, relacionado ao paradoxo vivido pelos rastafaris com relação ao mundo moderno, tecnológico e branco, buscando alternativas para contestá-lo.

Cabe ressaltar que os próprios rastafaris não apresentam em seus discursos essa operação dicotômica e vivem de forma a perceber e explicitar unicamente a “totalidade” dos valores e práticas que eles constroem e pelos quais suas identidades estão sendo construídas. Isto é, essa abstração, que desmembra a experiência rastafari a partir de dois pontos distintos, “a idéia de natureza” e “a militância anticapitalista”, é meramente um artifício metodológico, um esforço do pesquisador para compreender e tornar compreensível o movimento rastafari.

Sabemos, por meio de inúmeras etnografias e da contribuição intelectual que as ciências sociais vem desempenhando desde a origem de suas disciplinas que a relação dos homens com a natureza varia consideravelmente - histórica e culturalmente - sendo assim não existem categorias que estejam prontas e pré-determinadas biologicamente. Há espaço para concepções variadas na comunicação do homem com o meio, consigo mesmo e com os outros homens. Noções de Bem / Mal, Sagrado / Profano, entre outras, fazem sentido dependendo do contexto cultural em que os atores sociais estão inseridos.

De maneira resumida, posso citar como exemplo os típicos cabelos compridos e embaraçados dos rastafaris, conhecidos como dreadlocks ou “madeixas que chocam” (segundo algumas traduções) e que são um belo exemplo da dualidade “Natureza / Protesto”. Por um lado, o ato de deixar os cabelos crescerem e não penteá-los é, para os rastafaris, um sinal de sua “naturalidade”, fruto de desapego material e nas palavras de um de meus informantes, o resultado de sua própria “natureza inalterada”. Por outro lado, como o próprio nome diz, são “madeixas que chocam” e os dreadlocks, olhando por essa ótica, são um signo de protesto e contestação. O desapego material simbolizado nos emaranhados dos cabelos é o mesmo desapego aos produtos industrializados e à tecnologia em geral, desapego este que corrobora com todas as práticas da visão de mundo rastafari, sinônimos de “natureza” e “protesto”.

Sendo assim, as atividades do rastafarianismo obedecem a duas ordens: 1- práticas rituais e cotidianas tidas como naturais, sendo do domínio do sagrado: canto, dança, alimentação vegetariana, consumo da cannabis, contato com a terra (plantio e colheita de alimentos) , não cortar ou pentear os cabelos, louvar a África e Ras Tafari I, etc. 2- Atividades de cunho político: uma das características mais marcantes nesse tópico é o fato de que os rastafaris, quando inseridos nas cidades, abdicam do direito ao voto. Segundo eles: “nenhum governo é legítimo”, com exceção dos reis da dinastia salomânica da Etiópia.

Sustento que todos os elementos do ethos rastafariano podem ser analisados mediante a abstração “Natureza / Protesto”. A cannabis é um objeto que encarna essas duas dimensões na medida em que ela é para os rastas um dos grandes símbolos sagrados da natureza, sendo ao mesmo tempo uma bandeira para a transformação do modelo jurídico, moral e comportamental das sociedades contemporâneas.

Uma das frases mais usadas pelos rastafaris para designar a cannabis é chamá-la de “a cura das nações” . Se o “rastafarianismo” é essencialmente um movimento religioso de protesto - desde sua origem com Marcus Garvey, que rejeitou a dominação branca - fumar a “ganja” é também protestar e rejeitar as leis de uma hegemonia colonialista, que proíbe legalmente o uso da cannabis. Esta é também uma marca simbólica de sua identidade.

Para ilustrar essa característica “revolucionária” dos rastafaris e da utilização da “ganja” não apenas como sacramento, mas como contestação, posso citar um fenômeno histórico similar, descrito por MacRae e Simões (2000). Eles mostraram que a cannabis, a partir dos anos 60, começou a ser consumida por camadas médias urbanas brasileiras e logo em seguida, com o surgimento da ditadura militar, teve seu uso – já não mais restrito às camadas baixas e marginais da sociedade – associado a um estilo de vida alternativo, sendo também um dos elementos no processo de militância ideológica por liberdade de expressão, por igualdade e justiça social. Assim como essa geração brasileira, - que lutou por uma causa antiditatorial - os adeptos do “rastafarianismo” militam contra um modelo de vida “ocidental” e utilizam a “ganja” como bandeira místico-religiosa e política.

É por esse status privilegiado da cannabis dentro da cosmologia rastafari que entendo seu uso como um “fato social total”. Esta idéia se tornará mais clara na medida em que observarmos os aspectos mais gerais de suas técnicas de uso, as interpretações e as associações - ora feitas pelos “nativos”, ora por mim - que correlacionam o consumo da cannabis com outros aspectos da vida social rastafari.

Destaco agora uma das definições de Marcel Mauss sobre o que denominou por “fato social total”: “Nesses fenômenos sociais ‘totais’, como nos propomos chamá-los, exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais-estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo -; econômicas – estas supondo formas particulares da produção e do consumo (...); sem contar os fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam” (Mauss 1974; p.187).

4 comentários:

  1. Reflexão de primeira !!
    Orra velho, um texto mto preciso e coerente !
    Não me lembro onde, mas li que uma pesquisa mostra que individuos que consomem cannabis estão mais aptos à contestações político-sociais.
    E aí temos o resultado: um texto, que mostra a reflexão sobre o choque de duas culturas (rastafarianismo X modelo social atual), publicado em um Blog que transborda informações canábicas, exatamente às 4:20!

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  2. eae galera, meu comentario nao é bem um comentario sobre o post, é tipo um pedido
    como tem a 'badlist' tbm poderia ter uma 'goodlist', ffalando quais politicos merecem nossos votos
    abracos
    mot

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  3. excelente post!!!
    quanta informação! parabens!!

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  4. muito bom adorei,,,,

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