sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

[Ed.#101] Portas da Percepção: Repressão e Preconceito – Plantas Enteógenas na América do Sul

por Fernando Beserra

 

Ainda hoje encontramos uma nefasta percepção do Estado, e de diversas esferas da sociedade, sobre os usos de enteógenos, sejam estes individualizados ou mesmo coletivos e ritualizados. Mesmo no Brasil, onde algumas religiões usam a ayahuasca como sacramento, resiste um preconceito inaudito, pois estas religiões, como se sabe, são extremamente ordeiras e normalmente adequadas à moral cristã ou, de modo geral, a moral aceita pela sociedade circundante. A situação se torna mais absurda se pensarmos que as religiões ayahuasqueiras são religiões brasileiras por excelência e patrimônio de nossa cultura.

 

Ora, este preconceito em relação aos estados alternativos de consciência não é novidade na constituição da subjetividade ocidental. Quando os europeus chegaram as Américas, já em meados do século XVI o uso local de enteógenos por povos tradicionais da região era conhecido. Por exemplo, sementes de glória da manhã, teonanácatl e peiote nos arredores do atual México, ayahuasca no norte brasileiro, achuma próximo das cordilheiras, etc... Além do quase onipresente tabaco.

Enquanto os europeus procuravam um uso diário de drogas como o álcool, evitando a ebriedade, mas mantendo o hábito, os povos indígenas faziam rituais ou atos festivos completamente diferentes. Se não eram feitos com a mesma regularidade, por outro lado, o uso do álcool e dos enteógenos normalmente visava à entrada em estados alternativos de consciência através do êxtase.

 

O êxtase experimentado possuía um valor radical, pois proporcionava a relação entre a realidade ordinária com a realidade extraordinária, permitindo excursões anímicas, saídas do corpo, adivinhações, curas “milagrosas” pelos deuses das plantas, mediadas por homens-medicina, todos atravessados pelo que o Lévy-Bruhl chamou posteriormente de “pensamento mágico” (diferenciando-o do pensamento racional). Na verdade, tais pensamentos “indígenas” eram tão racionais e elaborados quanto o pensamento dos europeus. A divisão entre “primitivos” e “iluminados” (iluministas, iluminadores) favoreceu apenas a dominação e o controle.

 

Por onde poderia, pois, começar o controle senão pela constituição da subjetividade, dos modos de ser e estar no mundo? Os europeus foram rápidos em estabelecer que para controlar e dominar os índios era necessário combater ferozmente a “idolatria” e, neste sentido, para o europeu conquistador todos os devaneios religiosos indígenas estariam ligados aos estranhos consumos de substâncias que induziam o êxtase. Nas palavras de Henrique Carneiro em “Amores e sonhos da flora”:

 

Em relação às drogas alucinógenas – peiote, puyomate, teonanáctl e ololiuhqui no México, achuma e chamico no Peru – as ordens religiosas incluíram essas plantas como um objeto de destaque a ser perseguido na campanha de extirpação das idolatrias e a Inquisição fez ler nas missas, no México, editos proibindo o peiote, o ololiuhqui e o puyomate e, na década de 1540, começou a realizar processos contra europeus acusados de consumirem estas plantas.

 

É claro que onde existe repressão existe liberdade. Os enteógenos foram usados como forma de resistência e manutenção da cultura indígena em muitos locais. Enquanto o frade Bernadino de Sahagun considerava a embriaguez (chamava de embriguez dos porres por bebida às mirações com enteógenos) como a principal causa dos vícios, más obras e inclinações, por outro lado, para os nômades chichimecas, “última fronteira indomada onde a resistência aos espanhóis perdurará ao longo de séculos” (como diz Carneiro), o peiote é o manjar que lhe confere força e coragem.

 

Ficamos por aqui, com um apreço a resistência e aos bravos guerreiros de ontem e hoje!

9 comentários:

  1. As formas de resistências dos povos tradicionais sempre houveram, hoje somos reflexo de toda esse processo colonizador

    ResponderExcluir
  2. Guerra no Egito. Motivo: religião, fanatismo, ganância. Dentre outros, religião. O Ministério da Lógica adverte: fumar maconha não provoca guerras, não promove licitação para compra de armamentos. E antes que esse ministério se esqueça, pra ter overdose de maconha são necessários sei lá quantos quilos, da última vez que tentei, depois de 1 grama capotei e acordei no dia seguinte.

    ResponderExcluir
  3. Muitas vezes a pessoa incomoda pela serenidade, pela plenitude de sentidos, pela auto-estima densa, pelo bom ânimo enfim, por um sem-número de coisas positivas.

    Acontece que, quem está mal-resolvido (em qualquer coisa) muitas vezes se ofende com isso e faz de tudo pra massacrar quem está bem.

    O americano branco (puritano mal-resolvido) se incomodou com os asiáticos, mexicanos e negros.

    Napoleão(mal-resolvido)se incomodou com os egípcios "classe média-baixa".

    Um certo papa que não me lembro o nome (mal-resolvido) se incomodou com árabes e orientais.

    Os mal-resolvidos proibiram "as cannabis" dos que estavam incomodando sem saber.

    ResponderExcluir
  4. complexo demais pras 5 da manhã depois de muita vodka................... jah bless
    1♥

    ResponderExcluir
  5. Pois é, adorei o artigo. Bem, eu sou um brasileiro que vivo na europa, um índio na casa do colonizador, mas aprendi das duas partes o bom de cada história. Tenho um amor eterno aos enteógenos, principalmente aos cogumelos, que em muito abriram minha visao e conhecimento da vida e do mundo. À cannabis que no meu estresse de cada dia de volta a paz me traz. E ao mesmo tempo, adoro o sistema de educacao/trabalho europeu, que faz de mim um profissional muito bem capacitato e competente. Mas concordo com anonimo (5/2 0:09) - se cada um estivesse de bem com a vida (bem resolvido como ele disse), eles viveriam em paz e deixariam viver. É sobre essas culturas e essas religioes que a colonizacao continua. A probicao da cannabis nao é nada mais do que uma das faces desse modelo (ainda) colonizador.

    ResponderExcluir
  6. no texto só descordo sobre o preconceito de quem consome ayuasca com relação a cannabis, muita gente que toma ayuasca fuma cannabis, muita mesma, os que não fumam e falam mal, é por que não sabe de nada

    ResponderExcluir
  7. Quero parabenisar vcs pelo modo neutro como conceguem transmitir uma matéria polemica como esta! se nossos jornais fossem falar sobre nossa planta ou ayuasca dessa maneira o preconceito seria menor, a midia induz parte de nossa sociedade!

    ResponderExcluir
  8. Mas qual o preconceito de quem consome ayahuasca com relação a cannabis no texto?

    Posso re-ver, mas pelo menos não foi minha intenção passar isso no texto... :)

    Abraços

    ResponderExcluir
  9. um livro bem legal de se ler é A VIDA DE MARIA SABINA
    muito bom...ele fala sobre a utilização dos cogumelos no mexico em 1950 por ai

    ResponderExcluir