[Ed.#109] Adão e Erva: Maconha escreve carta de Apresentação para Explicar “Quem Sou Eu”!

Resolvi escrever essa carta porque minha vida é um caos. Sou mais velha que Adão e Erva e toda história da humanidade, afinal de contas, sou uma Erva. Me chamo Maconha e muitos dizem que meu nome quer dizer má companhia. Mais de 90% dos pais entram em choque quando veem seus filhos em minha companhia. Sou marginal há pouco tempo, mas utilizada há milênios. Resolvi escrever essa carta para tentar explicar, a quem não me conhece, quem eu sou.

 

Segundo a teoria cristã, nasci no terceiro dia, junto com todas as plantas. De acordo com os registros mais antigos da cultura oriental, sempre fui útil para finalidades medicinais diversas. Em minha família botânica, a Cannabaceae, tamém se encontra a Humulus, cuja mais conhecida espécie é a Humulus Lupulus, o chamado lúpulo do qual se produz cerveja. O problema é que não tive a mesma sorte que minha irmã, e longe dos comerciais em horário nobre ou cargo de patrocinador da seleção de futebol, eu – Cannabis Sativa – sou compreendida por boa parte da população como amiga do crack, da violência e outras mazelas.

 

Eu peço – pelo amor de Deus – que seja observado o processo histórico que criou toda essa base aparentemente sólida de ódio e sofrimento. Compreender é um caminho para poucos, mas a educação é a oportunidade para todos e a leitura dessa carta não vai doer, pelo contrário, vai aliviar. Vai alinhavar a verdade e fazer perceber nossos rastros remotos de preconceito – ainda vivos não sei como. Não sei como ensinam o descobrimento do Brasil sem falar de mim. Era com as fibras do meu corpo que se faziam as cordas e velas das caravelas portuguesas.

 

Se perguntam como a maconha chegou ao Brasil, dizem que foram os escravos que trouxeram. Será possível? O cânhamo é meu nome industrial, destinado às fibras e outras finalidades. Quando é necessária resistência extrema ou de sofisticação absoluta, só a fibra de maconha serve, sendo assim usada tanto nos paraquedas do exército norteamericano quanto em bolsas e vestidos de alto luxo. Um dia pode ser que os portugueses assumam que já conheciam a maconha antes de ganhar os mares, mas enquanto isso, dão de presente essa cultura para os quilombos.

 

Assim como repreenderam a capoeira e o candomblé, fui proibida no Brasil. E em todo o mundo fui associada a povos marginais, com alegações absurdas nunca respaldadas pela ciência. Permaneci sendo cultivada e apreciada por muitos, gente de toda classe social, toda cor, todo credo, todo o planeta. Mesmo sendo anterior ao homem e a fala, e às línguas,  ganhei uma palavra que me arruinou e passou a significar um sinônimo obsucuro do mal, afinal, chamam de drogas a mim e também ao remédio, comprado na drogaria.

 

Até que os EUA declararam guerra às drogas, ou melhor, à algumas drogas. E com isso declaram que eu deveria ser uma planta extinta, já que onde quer que eu fosse achada, deveria ser destruida, assim como meus donos punidos severamente. Acontece que a grande difusão da minha cultura era anterior a cultura de massa e toda essa articulação medonha do mundo ocidental por armas, mortos e controle social/territorial. Então cai na boca do povo, ganhei as ruas com a Marcha em meu nome, e tive a oportunidade de escrever essa carta, de ser representada num blog, em fóruns e revistas pelo mundo todo. 

 

É certo que meu uso pode ser perigoso em alguns casos, como de toda e qualquer substância na face da Terra, mas de longe sou aquilo que taxam. Isso se comprova ao ver o irreparável traço de cultura e o entrelaçamento que tenho na história do homem. Comigo foi feita a impressão da primeira bíblia de Gutemberg e também impressa a constituição dos EUA. Uma carta é pouco para contar todas minhas funcionalidades, mas é suficiente para mostrar que há um horizonte diferente daquele que é mostrado pelos jornais de televisão. Ofuscada pela proibição, minha imagem no coletivo é bizarra. Mas assim como raiz, folha e flor, eu tenho esperança. Esperança de que um dia vou conseguir a minha liberdade. Nem que seja com o fim da humanidade.