[Ed. 84#] Portas da Percepção: Porque Usar um Enteógeno?

por Fernando Beserra

Na última semana deste espaço, trouxemos, entre outras coisas, o momento que Timothy Leary adotou o LSD como substância a ser utilizada na sua pesquisa em Harvard. Um mar de comentários apareceu, dos mais bonitos aos mais agressivos. Instalada a confusão, um questionamento ficou no ar: afinal, qual a finalidade de se usar um enteógeno? Qual a finalidade de usar substâncias que te impedem, em certas quantidades, de realizar atividades cotidianas como dirigir um carro ou realizar alguns tipos de trabalho?

O debate sobre os riscos e potenciais danos do uso de substâncias enteogênicas, embora ambíguo e carregado de conteúdos ideológicos, vem sendo amplamente desenvolvido desde a década de 1960. Por outro lado, quem tem discutido os potenciais positivos no uso dos enteógenos? Para tornar o tema ainda mais básico e visceral, perguntamo-nos, primeiro, por que ou para que o ser humano procura estados alterados de consciência.

Ninguém melhor para nos trazer algumas contribuições que Andrew Weil, autor do clássico “The Natural Mind” e criador da medicina integral. Os estados alterados de consciência seriam impulsos básicos e universais. O autor constatou a ubiqüidade, a onipresença, dos estados alterados de consciência na vida humana, a começar pela infância. Na infância as crianças, dentre outros comportamentos, começam a girar sem parar para entrarem em estado alterado de consciência num enorme prazer. Quem tem filhos ou fica próximo de crianças pequenas sabe bem disso. Então, nada mais natural que, na adolescência, procurar substitutos para estes impulsos primários.

Weil considera, e estou de acordo com ele nisto, que os estados alterados de consciência podem levar a estados “superiores”[1] de consciência. Estados alterados de consciência estão na base de usos apropriados da intuição, do contato com o inconsciente, de revelações inesperadas (como acontece quando alguém usa de maneira apropriada ayahuasca, LSD, Sally D, ou outro enteógeno) além de importante base do controle voluntário de processos orgânicos. Logo após o post confiram a matéria feita pelos Caçadores de mito (Mythbusters) sobre a hipnose.

Jonathan Ott, autor do legendário livro “Pharmacotheon”, talvez o livro mais completo que conheçamos sobre enteogenia, vai ao fundo da questão. Antonio Escohotado comenta os escritos de Ott e, sem papas na língua, procura discursar sobre a finalidade do uso das substâncias psicoativas e, de lambuja, supera a idéia de que as “drogas” resultariam em experiências ou prazeres artificiais. Se a dependência química, dependendo da substância, contexto, é um risco, assim como as “bad trips”, por outro lado, isso não muda em nada o enorme potencial de agenciamentos possíveis entre pessoa-substância.

Diz Escohotado:

Em primeiro lugar, as drogas não só não são paraísos artificiais – como propôs Baudelaire, profeta original do proibicionismo -, mas os únicos paraísos naturais dignos deste nome, junto com os gozos do baixo ventre e do paladar. Comparados com os deleites farmacológicos, os deleites da poesia, das artes plásticas e da ciência são incomparavelmente mais artificiais, e pretender o contrário é alienar-se com “a pálida lasciva religiosa” (William Blake), obstinada em considerar que o natural ou animalmente prazeroso resulta pecaminoso. Em segundo lugar as generalizações sobre efeitos de tais ou quais psicofármacos omitem o formidável peso da individualidade que governa como “idiosincrasia” os efeitos de qualquer ingestão, por qualquer via. Um estimulante se converte em um sedante, um sedante em um desinibidor, um alucinógeno em um hipnótico e assim sucessivamente, dependendo da pessoa e do momento[2].

Portanto, podemos pensar que os fármacos, dentre estes os enteógenos, podem servir a uma enorme gama de intenções, em parte modeladas pela ambientação. Dentre estes, o alívio da angústia, o encontro com o sagrado, a amplificação da criatividade, a intensificação das sensações e mesmo um prazer afirmativo, que não pode ser considerado resultado de uma fuga do desprazer. Temos muito ainda a discutir sobre este tema e cada ponto específico daria um tratado. Procuramos abrir a discussão sobre a multiplicidade dos usos de substâncias psicoativas, e, dentre estas, dos enteógenos. E vocês? Quais os usos que vêem como positivos e de que modo eles incrementam a vida do usuário?

---

[1] - Pode-se dizer também: ampliados. Ou simplesmente usar outro modelo de realidade e dizer que os enteógenos nos levam a outros “túneis de realidade” que não o consensual e que estes diferentes estados do real se articulam a realidade consensual, de forma que os psiconautas encontram grandes transformações em suas vidas após o uso de enteógenos.

[2] - Tradução nossa.