[Ed. 94#] Adão e Erva: "Tudo me é Lícito mas nem Tudo me Convém"

O maior nome do cristianismo viveu a vida inteira sem livros e sem professores. Jesus Cristo é figura histórica, admite até mesmo a historiografia mais cética. Mas o que teria feito esse homem, para dividir o calendário de boa parte do mundo em antes e depois dele? Mesmo com toda importância, ele ainda é ignorado pelos seus mais fieis seguidores, já que, pelo menos quando o assunto é droga, ninguém lembra de dizer sobre essa personalidade,  levando o debate para o ponto de vista meramente moralista.

 

Nosso personagem mitológico fez comunhão quando criança e também frequentou às escolas dominicais ministradas em ônibus escolares em Woodstock, embora não entendesse bem o inglês dos professores. Mas há realmente pouco tempo foi que Adão teve contato com um pastor, de verdade, homem de empenho, coragem e determinação. Em decorrência dos problemas familiares causados pelo seu namoro com a Erva, Adão foi obrigado a conversar com o cara.

 

Mais de 30, menos de 40 anos de idade. Pastor era sangue bom, comunicativo como são todos eles. Além de homem de Deus, o pastor é dono de uma casa de recuperação de dependentes químicos que atua sem fins lucrativos, tentando salvar pacientes das garras do crack. A visita chegou em hora errada, mas Adão interrompeu a cena de amor e deixou metade do beck para mais tarde...

 

"Olá, Pastor, tudo bom?". Adão é prudente e educado e através das palavras soube demonstrar o verdadeiro respeito que sente, independente de credo, pelo trabalho que o Pastor executa, com muito sacrifício. A conversa não poderia ser outra, mas o encaminhamento seria inédito, para ambos. O Pastor, cheio de experiência, veio com aqueles testes básicos de dependência química. Adão respondeu como se, ao invés de maconha, estivesse falando de Coca-Cola, e infelizmente o veredito foi o esperado: Você precisa de ajuda.

 

Mas acontece que Adão é milenar e conseguiu explicar pro Pastor pelo menos uma parte de seu amor pela Erva. Em primeiro lugar, Adão usou de humildade para dizer que, caso um dia precisasse de ajuda, gostaria de fato de poder contar com o aparato técnico e espiritual do Pastor. Porém... antes gostaria de fazer uma pergunta: "Nesses 20 anos de trabalho nessa área, alguma vez chegou à clínica um usuário que tenha atingido o fundo do poço só com o uso de maconha"? E a resposta foi: não.

 

"No entanto, meu jovem", mal sabia ele que Adão é milenar, "todos começaram com a maconha". E aí nosso personagem contra-argumentou dizendo que não, a maconha certamente teria sido a primeira droga ilícita, mas a primeira droga, de fato, nunca é a maconha. A menos que o cidadão seja filho de um maconheiro descuidado. Sem descuidar da retórica, Adão não deixou o Pastor verter a teoria da porta de entrada, afinal, apesar de fumar maconha há 5 mil anos, nunca quis chegar perto da cocaína, muito menos do crack.

 

Na sequência, mais uma pergunta: "Então você acha que o melhor que devo fazer, para abandonar o hábito de fumar maconha, seria me internar, abandonando assim vida social, trabalho e faculdades". A resposta foi sincera: não. Ora, uma internação além de desnecessária, seria insana. Adão na camisa de força ficaria realmente fraco - e não é esse o intuito de ninguém.

 

Conversa vai, conversa vem... Adão abrindo seu coração sobre toda literatura que possui e todas as informações que acumula, vasculhando cada vestígio dessa cultura. Eis que o Pastor resolve também fazer uma revelação, porém estritamente pessoal. Seu passado era negro e não foi esquecido pelo Milagre de Manassés, pelo contrário, servia de exemplo para centenas de ovelhas. Ele relatou que usou todas as drogas, chegando a abusar do crack e até mesmo a se envolver no tráfico de drogas, portando arma em boca de fumo.

 

Mudança de vida, de rumo, de história. Amém. Naquele momento, Adão agradeceu ao Pai junto com o Pastor por essa segunda vida conquistada. Isso faz com que, além de tratar usuários, o Pastor tenha acesso aos locais mais barra pesada do consumo e venda de drogas. Adão nunca pisou numa boca de fumo, o Pastor já havia trabalhado numa. Sua última visita fazia realmente poucos dias. Ele recebeu pedido de ajuda do chefe da boca desesperado com o uso de crack pelos funcionários do esquema.

 

Esse trabalho, desenvolvido no ápice da degradação, é importante e muito válido. Mas é preciso compreender que as sequelas deixadas no emocional dessas pessoas que relatam isso cotidianamente não devem ser usadas para a defesa da proibição das drogas. Afinal, o que se vê nessas áreas não é o que acontece com a grande maioria dos usuários, sobretudo de erva. O Pastor concordou com isso, fazendo valer a sua realidade como realmente árdua, porém transbordada de mérito, dignidade e honra.

 

O Pastor explicou também que algumas pessoas podem até morrer de abstinência do crack. E que o índice de recuperação infelizmente é baixíssimo.  Adão comentou sobre redução de danos e os estudos do Dr. Dartiu Xavier, que tentam substituir o crack por maconha. Ele ficou surpreso, mas não deu atenção. Comprar remédio tarja preta para segurar a onda dos pacientes é permitido, então é legal para a Igreja. Mas... até que ponto esse posicionamento tem a ver com preceitos religiosos?

 

Ao falar da legalização da maconha, muita gente diz não pelo problema do crack. Os rastas defendem o contrário, tal como a ciência passa a perceber, a Erva pode ajudar a re-ligar o ser humano, fazendo com que químicos vorazes sejam deixados para trás.

 

Quando Adão falou do Hempadão aí foi a vez do Pastor perguntar, e ele disse: "Você não tem peso na consciência em fazer um blog que pode influenciar os outros a fumarem maconha?". E Adão respondeu: "Você acha que o Kaká deve sentir peso na consciência por fazer propaganda de cerveja em rede nacional?". Porque o álcool sim, faz muita gente bater na porta da clínica, seja por acidente ou vício.

 

O Pastor fingiu que não ouviu e disse: "É, mas se tiver alguém em cima do muro, vai ver o site e achar legal". E então Adão não fez cerimônia sobre a Erva: "Pastor, se a curiosidade germinou sozinha na cabeça, será que não iria florir na experimentação mesmo que não houvesse isso aqui? E então, a história mostrando que sim... é melhor alguém fumar maconha tendo sobre ela informação ou não sobre a droga?".

 

Ele foi sincero e cordial: "É verdade. Devo admitir, você é realmente bastante... consciente". Foi demais ouvir isso, mesmo chapAdão. Jesus Cristo, que quase não entra na conversa, porque sua época é anterior à proibição das drogas, teve papel primordial naquela noite. Paz, amor e união, na hora da oração, nunca é vão, fazendo de Jah à Jeová a perfeita conexão e iluminação para o corpo e mente são. Liberar a autonomia do indivíduo parece combinar muito mais com o "tudo me é lícito" do que a proibição. Porém, essa é uma verdade que - ainda - não convém.

 

*O Adão e Erva é a editoria literária do Hempadão.
Qualquer semelhança com a realidade é mero milagre.