por Fernando Beserra
Hoje no Portas da Percepção vamos falar de mais assuntos tabu: êxtase e transe. Mas, por que diabos, falar de transe? Ora, nada mais normal, na medida em que usuário de enteógenos comumente tem experiências extáticas que relatam como iluminações súbitas e descidas ao Hades. Estas experiências “místicas” foram interpretadas ao longo da história, em diversas partes do globo terrestre, de formas bastante diversas. Mais do que isso, serviram a finalidades distintas.
Entre o incrível e o patológico, a saída da percepção habitual era considerada em algumas tribos como uma saída da alma do corpo, sendo o corpo invadido por outros espíritos, bons ou maus. De acordo com os índios yaruros da Venezuela quando os xamãs saíam de seus corpos, voando em direção à terra dos espíritos, deixavam atrás de si uma casca da personalidade, servindo esse resíduo de canal de comunicação que eles estabelecem com os poderes sobrenaturais. Já o cristianismo tradicional perseguiu as formas de transe, levando-as a rituais de exorcismo.
O fato é que a possessão já ocorreu em distintas realidades, mesmo políticas. Se, por um lado, o transe era um veículo extático dos xamãs, tantas vezes marginalizados, ou, em muitas sociedades, uma das únicas formas de resistência das mulheres ao patriarcado, por outro, o transe também já serviu para reiterar a ordem dominante. Em algumas sociedades, portanto, o xamã se confundia com o líder soberano da aldeia, e, quanto mais soberano, mais vil e cruel. E, quanto mais cruel, menos permitia que outras pessoas entrassem em transe, já que apenas ele poderia ter contato com realidades extra-mundanas que, em última análise, só serviam para reforçar seu poder.
As Portas da Percepção, portanto, foram bem vigiadas em períodos da história onde uma única forma de verdade pode ser digerida. Para criar descrédito aos psiconautas, aos que alcançam estados extra-ordinários através do uso de psicodélicos, políticos e gurus repetiram sistematicamente que isso se tratava de “religião instantânea”, portanto, sem valor, superficial e efêmera. Este julgamento, é claro, esta plenamente ligado à lógica protestante de que só é possível alcançar a graça através do trabalho (tripalium) longo, doloroso, árduo, ou, dizendo de outro modo, através do sofrimento, na mimese de Cristo.
Segundo Ann Shulgin, esposa de um dos maiores químicos dos psicodélicos, que apresentaremos num post vindouro, o uso de psicolíticos (enteógenos) está relacionado a vários distintos estados como alegria, prazer, experiência religiosa, sensações alteradas, etc. A nossa visão de que apenas um deles é possível deve-se a nossa típica lógica ocidental “ou-ou”, quer dizer, acreditamos que apenas é possível “ou uma coisa” ou outra, tratando diferentes elementos como opostos absolutos. Na prática, sabemos que a lógica clássica não se adapta a experiências invulgares de consciência.
Para finalizar nosso papo de hoje, fica fácil começarmos a identificar na contemporaneidade quem está de qual lado, ou não? Enquanto Gideon procura criar redes de poder reacionário, indo contra a diferença e a alteridade, reforçando seu poder, outros procuram, através dos psicodélicos, democratizar a si mesmos e ao mundo, tentando tornar este último um lugar de acolhimento da diferença, pois, afinal, por trás dos véus de Maia, estamos todos inter-ligados.
Cabe uma frase de F. Nietzsche, para que tomemos cuidado, e, ainda mais, para aqueles que procuram de qualquer modo achar bodes expiatórios para se auto-promoverem, pois podem encontrar no espelho o diabo que imaginavam ver no outro:
Aquele que luta com demônios deve acautelar-se para não tornar-se um também, quando se olha muito para o abismo, o abismo olha para você.
Impressionante! belo texto.
ResponderExcluirparabéns
Caio Leite
velho, to entrando em um estado doidão toda vez que fumo um, acho que vo ter que da um time, ta rolando umas bads.
ResponderExcluirÓtimo texto, como todos do Portas da Percepção!
ResponderExcluirAo companheiro aí de cima, rapaz, a viagem te leva pra onde tua cabeça te levar. Se tu anda tendo bads, isso significa que tem algo te incomodando, que a viagem trás à tona.
Nesses casos, eu particularmente prefiro ponderar e refletir sobre o problema, trazer eles à tona pode ser até útil, mas se o negócio for dar um tempo, também serve ehehaueae
Eu acho que o hempadao tinha que abrir um espaço pros leitores postarem sintomas ou coisas que sentem quando estão no estado...
ResponderExcluirEu por exemplo quando to chapado as vezes me pego nervoso pelo simples fato de que ter que descer do onibus. coisa banais assim mas que acabam estressando desnecessariamente.
Abraço
Parabéns, Fernando Beserra!
ResponderExcluirTexto muito bem elaborado, com um assunto bem atual e realmente gritante nessa nossa "sociedade".
Mais uma vez, parabéns!
Rodrigo Costa
O/
ResponderExcluirSerá que a origem das Religiões encontra-se nos enteógenos?
ResponderExcluirEsse texto é mesmo uma maravilha, adorei |
ResponderExcluirAo amigo Christian, o início das religiões é um bom assunto para se debater depois de dar uns 2 ! heh heh
Curto paaaaaaaacas seus textos.
ResponderExcluirE que venha o sobre Ann Shaugin então! Fiquei curiosíssima...
Também curtiria ver falar mais sobre os sintomas ansiogênicos. Acho que eles nos tornam mais cuidadosos e preparados para outros dissabores...
para o post de christian ► o que tudo indica é que a religião tenha começada através da enteogenia. No sentido de que tentavam organizar a experiencia para explicar na matéria até onde possivel para facilitar - este facilitar não quer dizer que está isento de sofrimento- a experiencia do imrão, brother, camarada ou ...
ResponderExcluirquando alguém passa mal nunca é culpa da planta, é sempre de quem a consumiu, como consumiu, o sentido que deu para o consumo, ou momento da vida que está passando. tem que estar apto a mudanças.
Fala gente!
ResponderExcluirObrigado pelos elogios ao texto. Sobre a questão do texto ser pequeno, ou os textos do "Portas", isso se deve, em geral, a uma forma de organização dos textos do blog. Entende-se que quando os textos ficam muito grandes, desanima grande parte dos leitores. Desta forma, alguns textos do Portas da Percepção seguiram com 2 ou mesmo 3 posts.
Entretanto, existe um outro motivo, a saber, minha falta de tempo em algumas semanas.
Gostei muito das sugestões e vou tentar preparar textos baseados nelas. Um texto que está no forno da minha cabeça há muito tempo é a relação entre enteógenos e início da religião, mas sempre me travo na hora de escrever, porque embora tenha muitas informações decorrentes de Mckenna, Ott, etc., me falta ler um livro fundamental sobre o assunto:
http://www.amazon.com/Persephones-Quest-Entheogens-Origins-Religion/dp/0300052669
Ainda vou ver se tem para baixar, que meu recurso para trazer livros de fora tá baixo! rs
Abraços pessoal!
Ah sim, qualquer coisa, idéia de texto ou mesmo texto pronto, podem enviar para o email: fernando.beserra@hotmail.com
Obs: Quem for do Rio de Janeiro, estamos pensando em criar um grupo de estudos de enteógenos! Portanto, qualquer coisa, enviem email.
Embarque na Trip !
ResponderExcluirCuidado com a paranoia galera! eu tenho tido umas experiências desagradáveis mas com o uso eu venho me tornando o meu próprio psicológo :)
ResponderExcluirMuito bom o texto mas discordo em alguns aspectos.
ResponderExcluirNa minha opinião esses tipos de sentimentos e transes deveriam ser alcançados de forma natural - pois Ele permite - e por natural incluo tudo que não é sintetico, feito pelo homem.
Além de ser o caminho correto para evolução espiritual é o melhor pois, como nós, a lampada quando recebe energia maior do que consegue suportar explode.
Assim surgem doenças, afinal essas químicas alteram as reações fisiológicas e naturais do nosso organismo.
A pergunta é, anonimo, existe algo mais natural do que os enteógenos?
ResponderExcluirMesmo os semi-sintéticos foram criados a partir de elementos da natureza e não cairam de para quedas na terra. As plantas então, nem se fala. Essa idéia da artificialidade das "drogas" é uma visão cristã fundamentada no "Paraísos Artificiais" do Baudelaire. Existem textos no blog tocando este assunto.
De fato existe um risco e todo o risco deve ser considerado. Entretanto, é preciso sinalizar que a vida em si é arriscada e apenas, como diz Nietzsche, uma corda bamba entre dois pontos, uma travessia. A experiência de transe - toda alteração do estado de consciência - contém seus riscos e a lampada pode "estourar" (e se recompor - de diferentes formas) com ou sem enteógenos.
Saudações cordiais,