[Ed. #89] Portas da Percepção: “E Agora, José?” -Redução de Danos e Enteogenia!

por Fernando Beserra

Recentemente foi realizada uma pesquisa pelo Comitê Científico Independente sobre Drogas, liderada por David Nutt, o mesmo pesquisador que foi demitido pelo governo inglês ao falar que o ecstasy é menos perigoso que o álcool e mesmo que andar a cavalo. A pesquisa foi veiculada no tradicional periódico Lancet (com matéria recente no psicoblog), onde foram divulgaram os seguintes dados:

Isso poderia parecer “muito louco” para um estudioso recente da política de drogas, mas para quem conhece um pouco mais de história das drogas, já sabe os absurdos perpetuados nesta área, entre eles os que justificaram, no discurso oficial, a proibição da ananda, cannabis ou, simplesmente, maconha. A pesquisa atual de Nutt quantifica os danos em: A) danos para o indivíduo e B) danos para a coletividade, e coloca o LSD com danos coletivos praticamente nulos e os danos individuais menores do que álcool, tabaco, cannabis ou MDMA.

Isso certamente é verdade no que se refere a danos orgânicos. E também não há dúvidas que atualmente são resultados controversos. Mas, vamos considerar que houve uma alteração substancial entre as pesquisas atuais, menos tendenciosas, e o bombardeio governamental dos anos 70. Nesta época o governo americano jogava sujo de verdade e chegou a publicar, no auge do consumo do LSD por hippies e contestadores em geral, uma “pesquisa” sobre o LSD, considerando que a substância causaria danos cromossomiais em seus usuários. Como diria o Planet Hemp: “É mentiiiiiira”.

Pouco tempo depois a informação foi desmentida e hoje é clara a distorção ideológica do conteúdo. Mesmo no início da década de 70 a revista Science já declarava que o LSD em doses moderadas não lesiona os cromossomos, não produz lesão genética detectável e não é teratogênico ou cancerígeno para o ser humano. Ou seja, podemos considerar que as informações desconexas do governo estadunidense nada mais fizeram do que criar bad trips em massa e tal governo poderia ser responsabilizado por acontecimentos graves nesta época. Da mesma forma as propagandas “simplesmente diga não” que embasam nossa política anti-drogas são responsáveis em alguma medida pelos usos funestos de algumas substâncias psicoativas[1],  incluindo o uso de crack mostrado em post recente aqui do Hempadão.

Considerando que o uso não vai acabar só porque moralmente o achamos negativo, é preciso saber como produzir efeitos benéficos: potencializando direitos, a autonomia dos usuários, aumentando sua responsabilidade sobre seu uso e intensificando o cuidado consigo mesmo.

Considerando os riscos e danos de substâncias enteogênicas, não há dúvidas de que existem mais riscos para os próprios sujeitos do que a coletividade, sendo estes riscos normalmente pouco relacionados a questões de origem orgânica (isso, obviamente, depende da substância, da quantidade ingerida, etc.)[2]. Esses riscos variam num enorme espectro, que vão desde um risco bastante ínfimo em situações controladas, até um grande risco, quando não se prepara a ambientação e o usuário tem antecedentes de problemas psíquicos graves, como uma psicose.

De qualquer modo, cada substância necessita de um cuidado particular e a primeira coisa que deveria ser feita por uma pessoa que pretende usar enteógenos é um estudo sobre a substância a ser utilizada, ou utilizá-la com alguém que já tem um conhecimento sobre a substância. P.ex, na maioria dos locais onde há consumo de ayahuasca se aconselha que o usuário não coma nada pesado no dia do uso, o mesmo é válido para o uso de sementes que contêm LSA[3] (amido de ácido d-lisérgico) além de vários outros enteógenos. A questão tempo também é fundamental, ou seja, saber quanto tempo aproximadamente demora a “trip” ou viagem, pois existe uma diferença fundamental no contexto a ser cultivado entre um trip de salvia divinorum fumada (extrato) onde o efeito dura em média 10 minutos e uma com cactos mescalínicos ou altas doses de LSD que possam chegar a 10 horas.

Outro fator importante no que se refere a redução de danos com enteógenos é a situação emocional pessoal: não é aconselhável utilizar enteógenos numa depressão ou com medos excessivos – a não ser que se esteja sob supervisão e se vise de fato enfrentar e  superar estas situações (como expomos no caso dos pacientes que tratam depressão com psilocibina).

No mais, ainda conhecemos pouco sobre a redução de danos com enteógenos e esta ainda é uma área de estudos aberta para pesquisas. Quem se habilita?

1 - Um exemplo histórico é o das Guerras do Ópio, quando a Inglaterra pretendia através da guerra obrigar a China a aceitar o livre comércio do ópio – já que a Inglaterra ganhava muito dinheiro com este comércio.
Enquanto a China proibicionista tinha um número um pouco menor de usuários de ópio do que a legalizada Índia, por outro lado, na China o uso do ópio trazia enormes danos sendo uma urgente questão de saúde pública e já na Índia sequer havia uma “questão do ópio”, ou seja, o uso era socialmente controlado. Sabemos o poder das propagandas “anti” nos países proibicionistas.

2 - Exceções são alucinógenos tropanos (daturas, mandrágora, beleno). É necessário um enorme cuidado também com a dosagem de substâncias onde ainda existe um estudo muito pequeno como é o caso da salvia divinorum. P.ex, sabemos que existe um uso milenar da salvia entre indígenas da América Central – que usavam as folhas da planta mascadas. Portanto, o uso das folhas era feito sem uso de extratos que muitas vezes são potencializados “além da conta” no típico delírio ocidental. Qual a finalidade, afinal, de extratos potencializados 50x? Quem sabe da potencia da salvia, especialmente em extratos – mesmo 5x – sabe que não tem o menor sentido esse excesso. Já a mascagem das plantas, embora extremamente desagradável, pode produzir um efeito bem mais suave – e claro que isso também depende de set e setting.

3 - Que causa um enorme desconforto estomacal, existem técnicas que já eram praticadas no uso tradicional (p.ex, índios mixe, zapotécas e mazatécas) de usar a infusão das sementes retirando as partes sólidas, reduzindo os desconfortos. O cuidado neste caso deve ser em relação a instabilidade do LSA que não pode ficar exposto por muito tempo a luz – devendo ficar em ambiente escuro após a extração.